Documentário no Brasil


No Brasil, assim como em diversos outros países, o cinema documentário nasceu pelo fascínio de registrar com fidelidade alguns eventos: festas, desfiles, cortejos etc. Durante a segunda e a terceira décadas do século XX, os antropólogos começam a adaptar este novo suporte para suas pesquisas de campo. Era o início, ainda que tímido, do documentário etnográfico brasileiro.

Como relata Monte-Mór (2004), em Tendências do documentário etnográfico, foi com a Comissão Rondon (Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas) que a fotografia e o documentário fizeram-se presentes no registro do cotidiano, principalmente das populações indígenas. O major Luiz Thomas Reis colaborou como fotógrafo e cinegrafista da Comissão até 1938, resultando disso um vasto material etnográfico. Seu objetivo principal era divulgar às populações urbanas o interior do Brasil e as ações da Comissão Rondon. Seu primeiro filme, Os sertões do Mato Grosso (1912), apresentava um Brasil pitoresco, com “empolgantes quedas d’água, extensas matas virgens e campos que se perdem no ilimitado do horizonte”. Rituais e festas Bororo (1917) é considerado um de seus filmes mais importantes.

Outro personagem muito importante na história do documentário brasileiro é o português Silvino Santos, que também nos moldes etnográficos realizou mais de oitenta filmes no início do século XX, entre eles estão Nos país das amazonas (1922) e No rastro do Eldorado (1925). Também os filmes realizados por Claude Lévi-Strauss são importantes na história do documentário brasileiro, e em especial, na história do documentário etnográfico.

No Estado Novo, o cinema documental inicia uma nova fase no Brasil. Além da regulamentação, Getúlio Vargas, seguindo as tendências européias, passa a utilizar o vídeo com fins educacionais, criando inclusive o Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince). Nesta época, anos 30 e 40 do século XX, destaca-se a figura de Humberto Mauro entre os principais realizadores de documentários.

Nos anos 50 e 60, o cinema documental no Brasil ganha novos formatos, influenciado principalmente pelo Cinema Novo e pelo Cinema Verdade Francês. O documentário passa a buscar cada vez mais uma linguagem própria, uma narrativa. Segundo Jean-Claude Bernardet, em Cineastas e imagens do povo (2003), até os anos 50, o documentário, embora importante e revelador de diversos aspectos da sociedade, não é um cinema crítico. È no decorrer da década de 50 e com os primeiros filmes curta-metragem do Cinema Novo que o documentário passa a retratar os problemas da sociedade brasileira em uma linguagem cinematográfica. 

Bernardet (2003) explica que o contexto sociocultural dos anos 60 é marcado por diversas tendências ideológicas, políticas e estéticas. Embora grande parte da produção documental deste período estivesse marcada pela política cultural governamental, à margem desta tendência se desenvolvem documentários inquietos tratando sobre os problemas sociais brasileiros. Entre 1964 e 1965, emerge o que Bernardet chama de “modelo sociológico”. 

O modelo sociológico, segundo o autor, trabalha com a criação de “tipos sociais”. As entrevistas/depoimentos são editadas de maneira a reforçar o que o locutor, com voz de Deus, está dizendo sobre aquelas pessoas. Portanto, se alguns dos depoimentos não se encaixam nos “tipos sociais”, criados nas falas do locutor, aquele depoimento é eliminado. Tudo, neste modelo, deve convergir para apenas um mesmo sentido. O dono da voz neste caso é o locutor, que se apresenta numa situação de exterioridade, ou seja, não faz parte daquilo que está sendo dito, mas tem capacidade intelectual para afirmar verdades sobre aqueles personagens. Também faz parte deste processo o locutor-auxiliar, ou especialista, capaz de confirmar o que o locutor principal está dizendo. É uma situação na qual o particular (os depoimentos) devem concordar com o geral (voz-over do locutor). Nesta hierarquização, a voz do entrevistado é a menos acreditada. Ela só se torna confiável quando o locutor confirma o que está sendo dito. Este tipo de documentário mostra o intelectual como aquele que deve alertar o povo ou conscientizá-lo sobre os problemas da alienação e exploração. 

O primeiro momento real de rompimento com o modelo sociológico, segundo Bernardet, se dá com o documentário Liberdade de Imprensa (1967). Ainda que este documentário mantenha algumas das tradições sociológicas, há mudanças significativas: o papel e importância do locutor é reduzido, algumas situações são criadas no momento em que se filma (ou seja, a câmera intervém na realidade e não apenas revela o que é real) e, por fim, a equipe e o cineastas deixam de ser invisíveis, aparecem em processo de interação com os entrevistados.

Essas rupturas abrem espaço, no Brasil, para novas reflexões sobre a prática documentária. Com Lavrador e Indústria, ambos de 1968, se rompe definitivamente com o modelo sociológico. Estes documentários atuam como metalinguagem sobre o próprio fazer documentário, questionando a subjetividade dos processos de seleção, edição e montagem. 

É claro que o modelo sociológico não deixa de existir no Brasil. Porém, a partir do final da década de 60, há uma recusa em se acreditar que o documentário possa afirmar verdades absolutas. Esta tendência é o que permite ao documentário desenvolver uma linguagem e uma estética diferenciadas. É essa capacidade de ver o documentário com uma multiplicidade de olhares, rompendo com a tradição do significado único e real, que permite o aparecimento de novas perspectivas e tendências documentais. Um dos principais representantes destas novas tendências no Brasil é Eduardo Coutinho.

BERNARDET, J. C. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 

MONTE-MÓR, P. Tendências do documentário etnográfico. In: TEIXEIRA, F. E.(org). Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus, 2004.

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